terça-feira, 20 de abril de 2010

O que sobrou foi uma xícara

O que sobrou foi uma xícara de café (ou de chá de hortelã). O que sobrou foi uma xícara que recebe uma sombra clara todos os dias quando é de manhã. É sempre uma nuvem que passa pela janela, espantando os pequenos pássaros lá de fora. E a xícara, sobre a pequena mesa da cozinha, de branca fica cinza por alguns minutos.

Quando ainda desperto, quando ainda sobrevôo meus pensamentos tentando quebrar esse sentindo-que-tive-bons-sonhos, sentindo o que é realidade e ilusão, lembro-me imediatamente que a xícara está lá, como se ela me esperasse para ficar cinza, ou verde, vai saber. Calço meus chinelos e adentro os corredores ainda sonolenta, ainda mal vestida, ainda despenteada. Sinto um cheiro de café, sinto o gelado das paredes com aqueles quadros que nem sei se gosto. E a xícara está lá.
Olho pra ela como se não a visse, como se ela fosse qualquer objeto transparente, translúcido, desinteressante, mas é tudo ilusão porque eu olho, verdadeiramente, como se fosse possível quebrá-la, com se fosse possível com a força do meu pensamento jogá-la contra a janela. Como se fosse possível adorar essa força que vem dela. E então chega a nuvem e forma aquela sombra. Aquela sombra maldita que a deixa tão mais sólida, tão mais densa, tão mais você.
Nesses longos minutos de sombra na xícara é como se eu também recebesse toda aquela sombra, como se eu, nuvem tenra, de repente fosse nuvem robusta (coisa que eu não sou). E assim, quando é, sinto ser possível mover uma tempestade, sinto ser possível controlar raios, trovões, relampagos, luminosidade.
Sento na cadeira, aquela de sempre. Sento na cadeira em direção à xícara. Eu poderia escolher outro lugar à mesa, mas não consigo, não devo, ou é alguma coisa que manda em mim e eu obedeço. Sente-se de frente para xícara, sussurra em meus ouvidos.
Se fosse xícara gente. Se fosse você xícara. Humano, carne e sangue, pequena, frágil, sem sentido. Talvez se sentisse bem por ser xícara, por ser humano, por receber uma pequena sensação do que é a vida e contentar-se com isso, apenas com isso.

Se você gente fosse xícara luminosa.

Um comentário:

Phelipe Barros disse...

Que texto intrigante, reflexivo... Digno de honras... As metáforas saltitando em doces palavras emocionadas...

Parabéns. Ganhei meu dia ao ler seu texto.

Um bju