sábado, 27 de março de 2010

Deixa o verão pra mais tarde!

É tão gratificante pensar em nada. O nada alimenta esse nosso desejo de ter sempre alguma coisa para amar, para pensar. Ah, danem-se! Como se eles entendessem e tivessem respostas para tudo que quase existe nessa vida.
Deixa a cadeira vazia, deixa o café esfriar, não espere alguém bater na sua porta.
Não espere alguém bater na sua porta.
Não espere alguém bater na sua porta.
Porque esperar é egoísmo e, juro para você, de egoísmo já basta a dúvida e a saudade que sentimos um dia. Não quero mais explicar cada tirinha dissimulada! Simplesmente não há palavras. O que não sei dizer é mais importante do que o que eu digo. Pensam que eu tenho a verdade absoluta, a palavra final, a força de vontade infinita? Mas eu sou tão finita que quase desapareço. Posso tocar com as pontas dos dedos cada um dos meus sentimentos, cada angústia que esse coração adora guardar num potinho e esconder embaixo da cama. Não quero mais pensar que elas existiram um dia, e muito menos que eu assoprei o pó daquela felicidade mentirosa. Aquela felicidade que, na verdade, só deixa pingar gotinhas de satisfação.
A felicidade completa não existe.
A felicidade completa não existe.
Porque sempre tem alguma desilusão. Sempre. Se não for com você, vai ser com outra pessoa. Pois...Quer saber? Cansei de tentar explicar.
Sua vez, poesia.
Quando o dia esbanjar esperança e cor, quero ver você se explicar.

Quero só ver.

quinta-feira, 25 de março de 2010

Não me fale de amor, essa palavra de luxo.

Às vezes eu acho que as pessoas buscam no amor uma fuga de si mesmas; e procuram nele uma pureza que não existe.
Pois bem, como se livrar dessa mania de perfeição?

O amor é ilusório. Idealizamos a outra pessoa procurando aquilo que nos falta, com um afã desesperado de sermos completos. Jogamos, de forma egoísta e insensível, a nossa felicidade nas mãos do ser amado. Mal sabemos que o amor não é instintivo, mas sim uma resposta ao aglomeramento cultural. Pois é. E fazemos isso sem ao menos compreender e, o que é pior, perceber.
Amar não é querer estar. Amar é poder estar sem. Esse é um ponto crucial, principalmente para mim que tenho tanta necessidade de provar que não preciso me envolver com ninguém para me sentir completa.

Veja bem, não estou aqui dando uma aula sobre como amar e afins. Só estou dizendo, na minha humilde opinião, que só se aprende a amar sendo amado e se eu não correspondo a determinadas expectativas o erro pode não ser meu.

terça-feira, 23 de março de 2010

Davi

Todos os dias são teus.
Todos os dias da minha vida são teus.
Sempre teus!

sábado, 20 de março de 2010

Escuta

Encontrei, ao menos, um pouco de pó para o café. É que há um grito dentro de mim e eu tenho a necessidade doentia de começar dançando por outros assuntos, outros mares, numa tentativa frustrada de esquecer aquilo que eu iria dizer até antes mesmo de saber. Veja bem, preciso te confessar três coisas, e preciso do seu silêncio para ter coragem. Mas não aquele seu silêncio de anos, aquele silêncio que doía em mim, aquele seu silêncio-navalha, que dizia tudo por não dizer absolutamente nada. Eu quero aquele seu silêncio que deslizava em seus lábios e formava um sorriso enquanto eu falava, falava sem parar. Aquele seu silêncio de quem compreendia tudo que havia dentro de mim, mesmo que isso parecesse muito pouco, muito sem, e não zen. Veja bem, coração, você acha que consegue me dar aquele silêncio gostoso? Mesmo que por alguns minutos?
A primeira coisa que eu preciso confessar: eu sorria do outro lado do telefone. Um sorriso ridículo, um sorriso que vazava tantos outros dramas e tantas outras paixões, mas eu não sabia que a única paixão era você, veja bem, quando eu fingia não querer que você me ligasse para dizer que o pão da padaria havia acabado de sair, que estava ventando lá fora e que seu quarto estava escuro e acolhedor, do outro lado, aqui no meu quarto, eu torcia para você continuar falando, falando e falando por, não sei, seis, sete minutos a mais. É que eu tive medo, entende, medo porque um dia as palavras poderiam faltar, então eu as guardava para determinados momentos, sempre adiando o nosso encontro, o dia em que daríamos as mãos novamente. Acho que por isso que estou te dizendo tudo isso agora, porque as palavras se acumularam, sim, as palavras se acumularam feito livros velhos e empoeirados no fundo da biblioteca de algum lugar por onde acabou de passar um furacão ou um holoucasto, um lugar com muita dor, com muita perda e muita incerteza. Tipo eu, tipo nós.
A segunda coisa é: eu lembro de tudo o que conversamos naquela noite. Por mais patética que eu tenha sido, por mais bêbada, eu estava sendo sincera, ou tentando ser. Eu queria apenas um colo, um colo que só você poderia me dar, e você deu e meu coração conheceu aquele medo de amar mais uma vez. Mas tudo bem, entende, isso sempre foi pouco para mim, o medo, tudo bem, ele foi grande, mas hoje eu consigo compreender que ele foi necessário assim como o nosso primeiro encontro, a nossa primeira briga e o seu primeiro sorriso. O seu primeiro sorriso para mim virou apenas uma lembrança bonita e eu posso resumi-lo agora em três palavras: vontade de continuar.
E a terceira coisa que eu preciso te confessar é: não posso mais te esperar. Não posso, não quero, e se eu esperar vou me arrepender de não ter cortado esse sentimento que me consome de forma impura, cortante, triste, triste, triste, como se tudo tivesse se perdido para sempre. Não posso mais te esperar porque esperar é egoísmo e eu cansei de ser egoísta e adiar todos os dias da minha vida, adiar os meus momentos de felicidade, eu poderia ter sido feliz anos atrás, eu poderia pensar que agora as coisas não estão assim tão ruins, se eu não tivesse esperado e adiado, entende? É como perder o trem. Ou você o perde e se lamenta para o resto da vida, mas então fantasia e narra de forma bonita tudo que poderia ter sido e não foi, todos os dias que poderiam ter nascido e ficaram guardados em uma caixinha de vontade e de saudade. Mas se você consegue subir no trem acaba percebendo que nele não se tem o peso da certeza, que ele balança de dúvidas e que no final acabamos chegando onde queríamos, mas que poderia ter sido muito melhor, que as coisas eram melhores em retratos, em conversas, entende, não quero, não quero, não vou, talvez nunca chegue a acontecer, vamos aceitar.
Que aceitar é reconhecer e entender que certas coisas duram o tempo necessário pra não se tornar apenas parte da imaginação.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Olha,

eu estou te escrevendo só pra dizer que se você tivesse telefonado hoje eu ia dizer tanta, mas tanta coisa. Talvez mesmo conseguisse dizer tudo aquilo que escondo desde o começo, um pouco por timidez, por vergonha, por falta de oportunidade, mas principalmente porque todos me dizem que sou demais precipitado, que coloco em palavras todo o meu processo mental (processo mental: é exatamente assim que eles dizem, e eu acho engraçado) e que isso assusta as pessoas, e que é preciso disfarçar, jogar, esconder, mentir. Eu não queria que fosse assim. Eu queria que tudo fosse muito mais limpo e muito mais claro, mas eles não deixam, você não deixa.

domingo, 14 de março de 2010

Los Hermanos me acalma.
Pronto, disse tudo.

sexta-feira, 12 de março de 2010

20!

Sabe-se que este ser encantador que digita no momento está completando duas décadas de vida.
E eu estou aceitando de presente uma biblioteca, uma viagem pela América do Sul e a reprise de alguns dias.

quinta-feira, 11 de março de 2010

deixa ser como será

De um lado, a xícara de café já frio. Do outro, uma vida que poderia ter sido e foi, por tantos motivos bonitos, quase poéticos.
Ela notou, ao olhar para o dia que dançava por trás da janela, que às vezes o ser humano não quer mais do que pode ter. Quer simplesmente a tranquilidade de nada mais esperar, a tranquilidade de poder dizer sem ter que falar sempre, sem ter que dar inúmeros motivos que, no final de tudo, ninguém nunca compreende mesmo.
É que às vezes dá vontade de seguir em frente como se fosse só um sopro. Uma música do Marcelo Camelo, uma xícara de chá morno, um jardim, um cheiro de terra molhada.
Só, e simplesmente.

terça-feira, 9 de março de 2010

Pausa.

De tudo, de qualquer coisa. Só preciso de uma pausa.

sexta-feira, 5 de março de 2010

Carta para você

E sabe o que é mais legal? Tanto faz você ler agora ou não. Tanto faz...Porque o que não foi não é.

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E aconteceu mais uma vez.
Engraçado. Existem pessoas que entram na nossa vida de repente e com o mesmo estrépito saem, nos abandonam (ou são abandonadas por nós). Existem pessoas que ficam por um tempo, vão embora e voltam sem causar qualquer sentimento de ódio ou amor. Agora, há pessoas que mudaram a nossa vida de um modo muito intenso. Fizeram parte de algo muito importante. E isso acaba. Porque na vida, tudo acaba. Mas também volta, as pessoas voltam. E quando uma pessoa tão essencial assim reaparece, nosso mundo vira de cabeça para baixo. Não sabemos mais se estamos misturando tudo, se é apenas empolgação. Confusão, pensamentos que pisoteiam o nosso coração, bem lá no fundo mesmo. E dói. Dói pensar que se sente uma coisa que, talvez, não sinta. Mas dói ainda mais quando sentimos o que já sentimos um dia. Dói se o sentirmos com a mesma intensidade, com o mesmo gostinho, a mesma ilusão. Dói, dói mesmo. Sei lá de onde aquela coisa vem. Só sei que vem e pára na garganta. Dá vontade de chorar, de gritar, de se jogar nos braços daquela coisa mais linda, sempre sorrindo para você. Dá vontade de apertar aquela cara meiga e dizer tantas coisas idiotas. [...] É tudo tão complicado...E de repente fica tão simples. Por um lado, as coisas poderiam ser bem fáceis. Eu sei que poderia conseguir ser tudo aquilo que você merece, meu doce garoto. Eu sei que eu conseguiria bater na porta da sua casa e chegar de surpresa....Então, o que me impede? O que me impede de subir em um ônibus e viajar para a sua cidade? Paradoxalmente, o que me impede é você mesmo.
Porque eu sei, eu tenho certeza que vai ser perfeito. Lindo. Meigo. Doce. Fascinante. Perturbador. DESCONCERTANTE! E isso me deixa com tanto, tanto medo!
Só o futuro sabe o que vai acontecer. E só o passado sabe que um dia eu escrevi quase a mesma coisa, sobre mesma pessoa. Apesar de tudo, não consigo sentir nenhuma raiva. Só amor. Do mais intenso e sincero.

Você não se contentou em fazer parte da minha vida. TINHA que se tornar um pedacinho de mim. E eu já não sei se vivo sem...Sem aquele seu sorriso tímido. Sem aquela sua risada linda. Não sei se vou conseguir esquecer os dias que você cantou para mim, os dias que você disse que me queria muito, que me amava.
Estranho mesmo eu gostar tanto assim de você. Meu inevitável. Parece que nunca vai embora, poxa! Acaba sempre voltando!

Pode ser cedo para dizer que eu amo você. Mas não é. Porque já passamos por muitas coisas, não? Pois é, eu amo você. E acho que vou amar pro resto da minha vida.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Carta ao Zézim

Porto, 22 de dezembro de 1979

Zézim,

cheguei hoje de tardezinha da praia, fiquei lá uns cinco dias, completamente só (ótimo!), e encontrei tUa carta. Esses dias que tô aqui, dez, e já parece um mês, não paro de pensar em você. Tou preocupado, Zézim, e quero te falar disso. Fica quietO e ouve, ou lê, você deve estar cheio de vibrações adeliopradianas e, portantO, todo atento aos pequenos mistérios. É carta longa, vai te preparando, porque eu já me preparei por aqui com uma xícara de chá Mu, almofada sob a bunda e um maço de Galaxy, a decisão pseudo-inteligente.

Seguinte, das poucas linhas da tua carta, 12 frases terminam com ponto de interrogação. São, portanto, perguntas. Respondo a algumas. A solução, concordo, não está na temperança. Nunca esteve nem vai estar. Sempre achei que os dois tipos mais fascinantes de pessoas são as putas e os santos, e ambos são inteiramente destemperados, certo? Não há que abster-se: há que comer desse banquete. Zézim, ninguém te ensinará os caminhos. Ninguém me ensinará os caminhos. Ninguém nunca me ensinou caminho nenhum, nem a você, suspeito. Avanço às cegas. Não há caminhos a serem ensinados, nem aprendidos. Na verdade, não há caminhos. E lembrei duns versos dum poeta peruano (será Vallejo? não estou certo): “Caminante, no hay camino. Pero el camino se hace ai anda”.

Mais: já pensei, sim, se Deus pifar. E pifará, pifará porque você diz ”Deus é minha última esperança". Zézim, eu te quero tanto, não me ache insuportavelmente pretensioso dizendo essas coisas, mas ocê parece cabeça-dura demais. Zézim, não há última esperança, a não ser a morte. Quem procura não acha. É preciso estar distraído e não esperando absolutamente nada. Não há nada a ser esperado. Nem desesperado. Tudo é maya / ilusão. Ou samsara / círculo vicioso.

Certo, eu li demais zen-budismo, eu fiz ioga demais, eu tenho essa coisa de ficar mexendo com a magia, eu li demais Krishnamurti, sabia? E também Allan Watts, e D. T. Suzuki, e isso freqüentem ente parece um pouco ridículo às pessoas. Mas, dessas coisas, acho que tirei pra meu gasto pessoal pelo menos uma certa tranqüilidade.

Você me pergunta: que que eu faço? Não faça, eu digo. Não faça nada, fazendo tUdo, acordando todo dia, passando café, arrumando a cama, dando uma volta na quadra, ouvindo um som, alimentando a Pobre. Você tá ansioso e isso é muito pouco religioso. Pasme: acho que você é muito pouco religioso. Mesmo. Você deixou de queimar fumo e foi procurar Deus. Que é isso? Tá substituindo a maconha por Jesusinho? Zézim, vou te falar um lugar-comum desprezível, agora, lá vai: você não vai encontrar caminho nenhum fora de você. E você sabe disso. O caminho é in, não off. Você não vai encontrá-lo em Deus nem na maconha, nem mudando para Nova York, nem.

Você quer escrever. Certo, mas você quer escrever? Ou todo mundo te cobra e você acha que tem que escrever? Sei que não é simplório assim, e tem mil coisas outras envolvidas nisso. Mas de repente você pode estar confuso porque fica todo mundo te cobrando, como é que é, e a sua obra? Cadê o romance, quedê a novela, quedê a peça teatral? DANEM-SE, demônios. Zézim, você só tem que escrever se isso vier de dentro pra fora, caso contrário não vai prestar, eu tenho certeza, você poderá enganar a alguns, mas não enganaria a si e, portanto, não preencheria esse oco. Não tem demônio nenhum se interpondo entre você e a máquina. O que tem é uma questão de honestidade básica. Essa perguntinha: você quer mesmo escrever? Isolando as cobranças, você continua querendo? Então vai, remexe fundo, como diz um poeta gaúcho, Gabriel de Britto Velho, "apaga o cigarro no peito / diz pra ti o que não gostas de ouvir / diz tudo". Isso é escrever. Tira sangue com as unhas. E não importa a forma, não importa a "função social", nem nada, não importa que, a princípio, seja apenas uma espécie de auto-exorcismo. Mas tem que sangrar a-bun-dan-te-men-te. Você não está com medo dessa entrega? Porque dói, dói, dói. É de uma solidão assustadora. A única recompensa é aquilo que Laing diz que é a única coisa que pode nos salvar da loucura, do suicídio, da auto-anulação: um sentimento de glória interior. Essa expressão é fundamental na minha vida.

Eu conheci razoavelmente bem Clarice Lispector. Ela era infelicíssima, Zézim. A primeira vez que conversamos eu chorei depois a noite inteira, porque ela inteirinha me doía, porque parecia se doer também, de tanta compreensão sangrada de tudo. Te falo nela porque Clarice, pra mim, é o que mais conheço de GRANDIOSO, literariamente falando. E morreu sozinha, sacaneada, desamada, incompreendida, com fama de "meio doida”. Porque se entregou completamente ao seu trabalho de criar. Mergulhou na sua própria trip e foi inventando caminhos, na maior solidão. Como Joyce. Como Kafka, louco e só lá em Praga. Como Van Gogh. Como Artaud. Ou Rimbaud.

É esse tipo de criador que você quer ser? Então entregue-se e pague o preço do pato. Que, freqüentemente, é muito caro. Ou você quer fazer uma coisa bem-feitinha pra ser lançada com salgadinhos e uísque suspeito numa tarde amena na CultUra, com todo mundo conhecido fazendo a maior festa? Eu acho que não. Eu conheci / conheço muita gente assim. E não dou um tostão por eles todos. A você eu amo. Raramente me engano.

Zézim, remexa na memória, na infância, nos sonhos, nas tesões, nos fracassos, nas mágoas, nos delírios mais alucinados, nas esperanças mais descabidas, na fantasia mais desgalopada, nas vontades mais homicidas, no mais aparentemente inconfessável, nas culpas mais terríveis, nos lirismos mais idiotas, na confusão mais generalizada, no fundo do poço sem fundo do inconsciente: é lá que está o seu texto. Sobretudo, não se angustie procurando-o: ele vem até você, quando você e ele estiverem prontos. Cada um tem seus processos, você precisa entender os seus. De repente, isso que parece ser uma dificuldade enorme pode estar sendo simplesmente o processo de gestação do sub ou do inconsciente.

E ler, ler é alimento de quem escreve. Várias vezes você me disse que não conseguia mais ler. Que não gostava mais de ler. Se não gostar de ler, como vai gostar de escrever? Ou escreva então para destruir o texto, mas alimente-se. Fartamente. Depois vomite. Pra mim, e isso pode ser muito pessoal, escrever é enfiar um dedo na garganta. Depois, claro, você peneira essa gosma, amolda-a, transforma. Pode sair até uma flor. Mas o momento decisivo é o dedo na garganta. E eu acho — e posso estar enganado — que é isso que você não tá conseguindo fazer. Como é que é? Vai ficar com essa náusea seca a vida toda? E não fique esperando que alguém faça isso por você. Ocê sabe, na hora do porre brabo, não há nenhum dedo alheio disposto a entrar na garganta da gente.

Ou então vá fazer análise. Falo sério. Ou natação. Ou dança moderna. Ou macrobiótica radical. Qualquer coisa que te cuide da cabeça ou/ e do corpo e, ao mesmo tempo, te distraia dessa obsessão. Até que ela se resolva, no braço ou por si mesma, não importa. Só não quero te ver assim engasgado, meu amigo querido.

Pausa.

Quanto a mim, te falava desses dias na praia. Pois olha, acordava às seis, sete da manhã, ia pra praia, corria uns quatro quilômetros, fazia exercícios, lá pelas dez voltava, ia cozinhar meu arroz. Comia, descansava um pouco, depois sentava e escrevia. Ficava exausto. Fiquei exausto. Passei os dias falando sozinho, mergulhado num texto, consegui arrancá-lo. Era um farrapo que tinha me nascido em setembro, em Sampa. Aí nasceu, sem que eu planejasse. Estava pronto na minha cabeça. Chama-se Morangos mofados, vai levar uma epígrafe de Lennon & McCartney, tô aqui com a letra de Strawberry fields forever pra traduzir. Zézim, eu acho que tá tão bom. Fiquei completamente cego enquanto escrevia, a personagem (um publicitário, ex-hippie, que cisma que tem câncer na alma, ou uma lesão no cérebro provocada por excessos de drogas, em velhos carnavais, e o sintoma — real — é um persistente gosto de morangos mofados na boca) tomou o freio nos dentes e se recusou a morrer ou a enlouquecer no fim. Tem um fim lindo, positivo, alegre. Eu fiquei besta. O fim se meteu no texto e não admitiu que eu interferisse. Tão estranho. Às vezes penso que, quando escrevo, sou apenas um canal transmissor, digamos assim, entre duas coisas totalmente alheias a mim, não sei se você entende. Um canal transmissor com um certo poder, ou capacidade, seletivo, sei lá. Hoje pela manhã não fui à praia e dei o conto por concluído, já acho que na quarta versão. Mas vou deixá-lo dormir pelo menos um mês, aí releio — porque sempre posso estar enganado, e os meus olhos de agora serem incapazes de verem certas coisas.

Aí tomei notas, muitas notas, pra outras coisas. A cabeça ferve. Que bom, Zézim, que bom, a coisa não morreu, e é só isso que eu quero, vou pedir demissão de todos os empregos pela vida afora quando sentir que isso, a literatura, que é só o que tenho, estiver sendo ameaçada como estava, na Nova.

E li. Descobri que ADORO DALTON TREVISAN. Menino, fiquei dando gritos enquanto lia A faca no coração, tem uns contos incríveis, e tão absolutamente lapidados, reduzidos ao essencial cintilante, sobretudo um, chamado "Mulher em chamas". Li quase todo o Ivan Ângelo, também gosto muito, principalmente de O verdadeiro filho da puta, mas aí o conto-título começou a me dar sono e parei. Mas ele tem um texto, ah se tem. E como. Mas o melhor que li nesses dias não foi ficção. Foi um pequeno artigo de Nirlando Beirão na última IstoÉ (do dia 19 de dezembro, please, leia), chamado "O recomeço do sonho". Li várias vezes. Na primeira, chorei de pura emoção - porque ele reabilita todas as vivências que eu tive nesta década. Claro que ele fala de uma geração inteira, mas daí saquei, meu Deus, como sou típico, como sou estereótipo da minha geração. Termina com uma alegria total: reinstaurando o sonho. É lindo demais. É atrevido demais. É novo, sadio. Deu uma luz na minha cabeça, sabe quando a coisa te ilumina? Assim como se ele formulasse o que eu, confusamente, estava apenas tateando. Leia, me diga
o que acha. Eu não me segurei e escrevi uma carta a ele dizendo isso. Não sou amigo dele, só conhecido, mas acho que a gente deve dizer.

Escrevendo, eu falo pra caralho, não é?

Aqui em casa tá bom. É sempre um grande astral, não adianta eu criticar. O astral ótimo deles independe da opinião que eu possa ter a respeito, não é fantástico? A casa tá meio em obras, Nair mandou construir uma espécie de jardim de inverno nos fundos, vai ligar com a sala. Hoje estava pUta porque o Felipe não vai mais fazer vestibular: foi reprovado novamente no 3º colegial. Minha irmã Cláudia ganhou uma Caloi 10 de Natal do noivo (Jorge, lembra?), e eu me apossei dela e hoje mesmo dei voltas incríveis pelo Menino Deus(?). Márcia tá bonita, mais adultinha, assim com um ar meio da Mila. Zaél cozinhando, hoje faz arroz com passas para o jantar.

Povos outros, nem vi. Soube que A comunidade está em cartaz ainda e tenho granas pra receber. Amanhã acho que vou lá.

Tô tão só, Zézim. Tão eu-eu-comigo, porque o meu eu com a família é meio de raspão. Tá bom assim, não tenho mais medo nenhum de nenhuma emoção ou fantasia minha, sabe como? Os dias de solidão total na praia foram principalmente sadios.

Ocê viu a Nova? Tá lá o seu Chico, tartamudeante, e uma foto muito engraçada de toda a redação — eu com cara de "não me comprometam, não tenho nada a ver com isso". Dê uma olhada. Falar nisso, Juan passou por aqui, eu tava na praia, falou com Nair por telefone, estava descendo de um ônibus e subindo noUtro. Deixou dito que volta dia três de janeiro ou fevereiro, Nair não lembra, pra ficar uns dias. Ficará? E nada acontecerá. Uma vez me disseram que eu jamais amaria dum jeito que "desse certo", caso contrário deixaria de escrever. Pode ser. Pequenas magias. Quando terminei Morangos mofados, escrevi embaixo, sem querer, "criação é coisa sagrada”. É mais ou menos o que diz o Chico no fim daquela matéria. É misterioso, sagrado, maravilhoso

Zézim, me dê notícias, muitas, e rápido. Eu não pensei que ia sentir tanta falta docê. Não sei quanto tempo ainda fico, mas vou ficando. Quero escrever mais, voltar à praia, fazer os documentos todos. Até pensei: mais adiante, quando já estivesse chegando a hora de eu voltar, você não queria vir? A gente faria o mesmo esquema de novo, voltaríamos juntos. A família te ama perdidamente, hoje pintaram até uns salseirinhos rápidos porque todo mundo queria ler a matéria do Chico ao mesmo tempo.

Let me take you down
cause I’m going to strawberry fields
nothing is real, and nothing to get hung about
strawberry fields forever
strawberry fields forever
strawberry fields forever


Isso é o que te desejo na nova década. Zézim, vamos lá. Sem últimas esperanças. Temos esperanças novinhas em folha, todos os dias. E nenhuma, fora de viver cada vez mais plenamente, mais confortáveis dentro do que a gente, sem culpa, é. Let me take you: I’m going to strawberry fields.

Me conta da Adélia.

E te cuida, por favor, te cuida bem. Qualquer poço mais escuro, disque 0512-33-41-97. Eu posso pelo menos ouvir. Não leve a mal alguma dureza dita. É porque te quero claro. Citando Arantes, pra terminar: "Eu quero te ver com saúde I sempre de bom humor I e de boa vontade".

Um beijo do

Caio

PS — Abraço pro Nello. Pra Ana Matos, e Nino também.






Do meu, querido, Caio Fernando Abreu.

Tempo

O caminhar torto dos ponteiros a me perseguir. Por vezes a leve brisa (des)encadeia lembranças de dias vindouros, e o silêncio de uma página em branco começa a gritar…